Foto e fragmento de biografia: www.luciaafonso.blog.br/sobre
LÚCIA AFONSO
(BRASIL – MINAS GERAIS)
Eu me chamo Lúcia Afonso, mas meu nome completo é Maria Lúcia Miranda Afonso. Sou Psicóloga Social e Clínica, Mestre e Doutora em Educação. Professora aposentada da UFMG, também atuei como professora visitante na UFSJ, na editoria da revista Pesquisas e Práticas Psicossociais e em consultorias sobre o trabalho social com famílias, grupos e territórios. Tenho livros e artigos publicados, dentre os quais destaco Oficinas em dinâmica de grupo: um método de intervenção psicossocial, publicado pela Editora Artesã.
(...)
Sou também uma poeta bissexta, instável, irregular, um pouco delirante com as palavras, ora frágil ora forte, mas sempre fiel à poesia como sustentação da vida. Assim, eu me dei a liberdade de aqui acrescentar textos e outros recursos literários que, mais do que tudo, podem oferecer-me alguma identidade.
ENTRELINHAS , VERSOS CONTEMPORÂNEOS MINEIROS. Organização: Vera Casa Nova, Kaio Carmona, Marcelo Dolabela. Belo Horizonte, MG: Quixote + Do Editoras Associadas, 2020. 577 p. ISBN 978-85—66236-64—2 Ex. biblioteca de Antonio Miranda
Mendiga
Hoje, Beleza entrou pelos meus olhos,
por caminhos tortos e, vestindo a roupa de Miséria,
deu-se a ver subitamente à tarde na Praça Tiradentes,
onde mendigos fizeram de um canto a sua casa
e, de sua vida privada, a insônia pública,
usando apenas papelão e trapos
e restos de lenha e lua.
Talvez porque eu estivesse tão carente dela,
Beleza podia me aparecer
justamente onde Miséria punha corpos sujos,
pois, enquanto eu passava, uma mulher
mendiga sorriu, não para mim,
mas para o mendigo, o homem
que, no chão da praça, tinha o rosto iluminado.
Sobre a calçada, ela se deitou e eles se beijaram,
por vezes seguidas se beijaram.
Na cena pública, corpos negros se inclinavam,
compondo um ângulo de breu e de segredo.
E, como, às três da tarde, naquela zona da cidade,
não se comercia prostituição e sexo,
eu concluí que eles se alhearam de Babilônica em torno
e, centrados no que lhes era próprio e interior,
felizes podiam ser por um momento.
Beleza perturbava o semblante dos passantes,
jogando por terra conceitos de Miséria.
E eu, que no vazio do ar, não tinha a sua boca,
me senti a mais mendiga das mulheres.
Floração
Sob o céu do cerrado, encontro espelho,
Árvore árida, tronco torcido, incêndio interior,
Na estação das águas, surge o broto do nada.
Floração — Ação de flor.
Palavras apenas duas
Saudade poderia ser a primeira palavra
a levantar a sua face atônita.
Ali onde o ser marcou presença,
nem sombra resta.
Bêbeda, memória se agarra às migalhas do vivido,
inventa rituais, ordena arranjos,
como se cada dia fosse um muro branco
onde a única palavra consentida é o seu nome.
A própria dor se torna um rito de passagem
para um tempo cada vez mais imaginário.
Exausta, memória insiste e faz acordos,
demarca, insana, o que (não) é real,
vomita, desmaia, acorda e demanda novamente.
Sôfrega, procura mais, restos,
em uma infinita arqueologia.
Tudo invade, recusa e nega
aquilo que de novo se anuncia.
Desesperada, memória apaga o amanhã.
Deixa-se levar pelo delírio
E re-veste o mundo que ela perde.
Seu riso ressoa no deserto se faz miragem.
Deserto — poderia ser outra palavra
que rima, em sua entranha, com Saudade.
*
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Página publicada em maio de 2024
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